O Princípio da Relatividade de Galileo

A alegoria do navio de Galileo sintetiza muito bem as ideias do Princípio da Relatividade:

Um observador (“experimentador”), num porão sem janelas de um navio que se move com velocidade e direção constantes em um lago, não poderá determinar a partir de experimentos mecânicos realizados no porão (pêndulos, planos inclinados etc etc)  a velocidade com que o navio se move.  Não é possível “sentir” o movimento com velocidade constante…

Posta de uma outra maneira esta analogia, teríamos:

Dois experimentadores em movimento relativo com velocidade e direção constantes irão obter sempre os mesmos resultados de experimentos mecânicos.

É claro que supomos sempre que os experimentos se movem com os experimentadores, caso contrário seria trivial determinar suas velocidades em relação ao experimento. Seria, como no caso do navio, subir ao convés e determinar sua velocidade em relação às margens do lago. Sabemos que a expressão matemática do Princípio de Galileo corresponde à invariância das Leis de Newton diante das conhecidas transformações de Galileo

\displaystyle  t' = t, \quad \vec X'  = \vec X - \vec v t,

sendo \displaystyle \left(t,\vec X\right) e \displaystyle \left(t',\vec X' \right) as “coordenadas” temporais e espaciais (com todo os cuidados dos espaços afins) dos dois observadores, e \displaystyle \vec v o vetor velocidade do movimento relativo entre ambos.

É instrutivo mostrar que a invariância de Galileo, e portanto o próprio Princípio da Relatividade, pode ser formulado como uma questão de simetrias em espaços afins. A noção de simetria pode (e assim faremos no futuro) ser definida de maneira rigorosa, mas por ora ficaremos com a  noção intuitiva que uma simetria é alguma transformação em um espaço que preserva alguma quantidade relevante. Veremos que as transformações de Galileo correspondem às simetrias do chamado espaço-tempo galileano.

Espaço-tempo Galileano

Seja um espaço afim {\cal A}=(Q,V) quadri-dimensional. Chamamos de funcional tempo (ou função de tempo) o funcional linear não nulo

t:V\to\mathbb{R}

Notem que {\rm Ker}(t)=S\subset V, com {\rm dim}(S)=3. (Convençam-se disto! Este material de um curso anterior pode ajudar). Como o nome sugere, o funcional tempo nos permite “orientar temporalmente” o espaço afim. Suponham dois eventos q_1,q_2\in Q. Diremos que  q_2 sucede q_1 se t(\overline{q_1q_2})>0. Obviamente, se \overline{q_1q_2} \in {\rm Ker}(t), dizemos que os eventos são simultâneos. Uma estrutura galileana em um espaço afim compreende um funcional tempo e um produto interno \langle\,\, , \rangle em S={\rm Ker}(t). Assim, chegamos à definição de um espaço-tempo galileano ({\cal A},t,\langle\,\, , \rangle): um espaço afim {\cal A}=(Q,V) quadri-dimensional, munido de um funcional tempo t e de um produto interno \langle\,\, , \rangle em S = {\rm Ker}(t). Por envolver também instantes de tempo, um ponto de um espaço-tempo é comumente chamado de evento.

Antes de continuarmos, convêm alguns esclarecimentos. Primeiro, notem que num espaço-tempo galileano, temos apenas uma orientação temporal, i.e., há sentido em falar em eventos simultâneos, eventos que ocorrem antes ou depois de outros eventos, etc, mas não há nenhuma noção de ordenação espacial. Não há nenhum sentido, por exemplo, em dizer que dois eventos ocorrem num mesmo ponto do espaço para diferentes instantes de tempo. Um segundo ponto importante é que o produto interno \langle\,\, , \rangle permite falar de noções como ortogonalidade, distância (norma induzida pelo produto interno), etc em S = {\rm Ker}(t), mas não há nenhuma noção de ortogonalidade ou qualquer norma em V. Apesar de não haver noção de ortogonalidade em V, há uma noção de paralelismo entre subespaços afins de simultaneidade. Considerem dois eventos q_1,q_2\in Q não simultâneos (t(\overline{q_1q_2})\ne 0). Chamemos de {\cal A}_1 = (Q_1,S)\subset {\cal A}, com (q_1\in Q_1), o subespaço afim de simultaneidade ao evento q_1 . De maneira análoga, temos {\cal A}_2. É fácil mostrar que Q_1\cap Q_2=\emptyset, o que nos permite falar que {\cal A}_1{\cal A}_2 são paralelos, mesmo na ausência de um produto interno em V.

Definida a noção de um espaço-tempo, podemos nos perguntar agora que tipo de transformação preserva a estrutura galileana. Como tratamos de espaços afins, convém considerarmos transformações afins. Uma transformação G:{\cal A} \to {\cal A}'  entre espaços afins é dita afim se

G(q+\vec v) = L(\vec v) + G(q)

sendo L uma transformação linear, para todo q\in Q\vec v\in V. Estamos interessados em G:{\cal A} \to {\cal A}'  que sejam bijeções afins, assim ambos {\cal A}{\cal A}' poderão ser considerados espaços-tempos físicos (no sentido que poderemos descrever fenômenos mecânicos de maneira equivalente em ambos). É fácil mostrar que para que G seja uma bijeção afim, L deve ser invertível.  Muito bem, estamos agora prontos para definir as transformações que preservam a estrutura galileana de um espaço-tempo. Serão as transformações

({\cal A},t,\langle\, , \rangle) \xrightarrow{\quad G\quad }{({\cal A}',t',\langle\, , \rangle')}

tais que

  1. t'(L(\vec v))   = t(\vec v), \quad \forall \vec v\in V,
  2. \langle L(\vec v_1),L(\vec v_2 )\rangle'   =\langle  \vec v_1 , \vec v_2 \rangle, \quad \forall \vec v_1,\vec v_2\in {\rm Ker}(t)

Notem que a primeira condição implica que se \vec v \in S={\rm Ker}(t), então \vec v'=L(\vec v) \in S'={\rm Ker}(t'). Temos, portanto, S'=L(S) e não há dúvidas sobre a aplicação da condição 2. Evidentemente, dois espaços-tempos relacionados por uma transformação dessas têm exatamente a mesma estrutura galileana, i.e., todas as noções de ordenamento temporal e as noções de ortogonalidade, distância, etc, nos subespaços de simultaneidade são idênticas.

Vamos agora determinar explicitamente as transformações lineares L que preservam a estrutura galileana. É mais conveniente escrever sua forma matricial e, para tanto, vamos escolher uma base para V. Como S tem produto interno, podemos já escolher uma base ortonormal \hat{e}_i, \, i=1,2,3, tal que S={\rm span}(\hat{e}_1,\hat{e}_2,\hat{e}_3). Assim, basta escolher um vetor \vec v_0 \notin S para termos uma base (\vec v_0,\hat{e}_1,\hat{e}_2,\hat{e}_3) para V, a partir da qual definimos o que se chama de “referencial”: uma parametrização de Q gerada por essa base. Pela ação da transformação linear, esta base é levada à V' como (L(\vec v_0),L(\hat{e}_1),L(\hat{e}_2),L(\hat{e}_3)). Se \vec v = \Delta t\vec v_0 + \Delta x \hat{e}_1+\Delta y \hat{e}_2+\Delta z \hat{e}_3\vec v' = \Delta t'L(\vec v_0) + \Delta x'L( \hat{e}_1)+\Delta y'L( \hat{e}_2)+\Delta z'L( \hat{e}_3), a condição 1 (invariância do funcional tempo) implica \Delta t' = \Delta t. Portanto, a ação matricial de L nas componentes dos vetores pode ser escrita como

\displaystyle\left(\begin{array}{c}\Delta t'\\ \Delta \vec x'\end{array}\right) = \left(\begin{array}{c|c} 1 & 0\\ \hline \vec w & E\end{array}\right) \left(\begin{array}{c}\Delta t\\ \Delta \vec x\end{array}\right)

sendo \vec w\in S um vetor arbitrário e E  a matriz de uma transformação linear em S. A condição 2 exige que \langle E(\vec v_1),E(\vec v_2)\rangle' =\langle \vec v_1,\vec v_2\rangle, \, \forall \vec v_1,\vec v_2\in S e, portanto,  E deve ser uma matriz ortogonal. (Convençam-se disto! Vejam detalhes aqui.) Tomando E=1, é fácil reconhecer que as transformações que preservam a estrutura galileana são exatamente as transformações de Galileo usuais, com -\vec w identificada como a velocidade relativa entre os referenciais.

O grupo completo das transformações (contínuas) que preservam a estrutura galileana têm dez parâmetros, são eles: as três componentes da velocidade relativa \vec v, os três ângulos da matriz de rotação associada a E, e as quatro constantes que surgem na escolha do transformação G(q), as quais correspondem as escolhas da origem espacial e do instante t=0.

Resumindo, mostramos que, dado um espaço-tempo galileano, temos uma coleção de “referenciais” completamente equivalentes no que diz respeito a experimentos mecânicos. Dessa forma, a escolha de um referencial ou de outro, é irrelevante. Pode-se também falar de classe de equivalência de referenciais, e comumente chama-se esta classe de equivalência de “referenciais inerciais”. O interessante é que não precisamos das Leis de Newton para deduzir as relações entre estes referenciais, elas (que incluem as transformações de Galileo) decorrem de uma hipótese de simetria: a preservação da estrutura galileana, a qual, de certa forma, precede às Leis de Newton, pois são a expressão matemática do Princípio da Relatividade de Galileo, do qual a primeira Lei de Newton decorre.

Notem que o termo “observador” foi propositalmente omitido aqui, por dois motivos básicos. Primeiro, é um conceito desnecessário e, segundo, causa confusão. Para comparar o que discutimos com o que há na literatura, basta equiparar “observador” a referencial.

Espaço-tempo Lorentziano

Sabemos que os fenômenos relativísticos implicam que a estrutura galileana do espaço-tempo não é, de fato, invariante. Isto é, as transformações de Galileo não são simetrias autênticas da natureza, apesar do seu inequívoco sucesso no regime de baixas velocidades. Neste contexto, as noções galileanas de funcional tempo e seu núcleo não são as adequadas. Já comentamos que na relatividade especial a estrutura galileana é substituída por outra, a qual “mistura” as noções de tempo e espaço. Trata-se da chamada estrutura Lorentziana, a qual consiste numa forma quadrática bi-linear \langle \, , \rangle_L : V\times V \to \mathbb{R} que tem todas as propriedades de um produto escalar, exceto a positividade. Os vetores não nulos \vec v\in V são classificados, de acordo com a forma Lorentziana, como

  1. tipo tempo, se \langle \vec v , \vec v \rangle_L < 0 ,
  2. tipo luz, se \langle \vec v , \vec v \rangle_L = 0 ,
  3. tipo espaço, se \langle \vec v , \vec v \rangle_L > 0 .

Desta maneira, o “intervalo” entre dois eventos no espaço-tempo Lorentziano (Minkowskiano)  será classificado da mesma maneira. Um espaço-tempo Lorentziano ({\cal A},t,\langle\, , \rangle_L) é um espaço afim munido de um funcional tempo t:V\to R e uma forma Lorentziana \langle \, , \rangle_L : V\times V \to \mathbb{R}. A forma Lorentziana nos permite definir o funcional tempo como

t(\vec v) = \langle \hat{e}_0 , \vec v \rangle_L

sendo \hat{e}_0 um vetor tipo tempo (o qual vamos admitir sem perda de generalidade ser “unitário”: \langle\hat{e}_0 ,\hat{e}_0 \rangle_L =-1), que define a orientação temporal do espaço-tempo. Da mesma maneira que no caso Galileano, {\rm Ker(t)} irá definir o subespaço de simultaneidade. Sabemos que {\rm Ker(t)} é um espaço vetorial de dimensão 3. Aqui, temos a hipótese adicional de que {\rm Ker(t)} é um subespaço do tipo espaço (i.e., gerado por três vetores tipo espaço) com produto interno dado por

\langle \vec v_1 , \vec v_2 \rangle = \langle \vec v_1 , \vec v_2 \rangle_L,\, \forall \vec v_1,\vec v_2\in {\rm Ker}(t).

Esta hipótese é equivalente a admitir que há três direções espaciais e uma temporal ou, em outras palavras, que a forma Lorentziana tem assinatura (-,+++). Desta maneira, podemos introduzir referenciais para V da mesma maneira que no caso Galileano: (\hat e_0,\hat{e}_1,\hat{e}_2,\hat{e}_3)  tais que

-\langle \hat e_0,\hat e_0\rangle_L =\langle \hat e_1,\hat e_1\rangle_L =\langle \hat e_2,\hat e_2\rangle_L =\langle \hat e_3,\hat e_3\rangle_L = 1,

com todos as outros produtos nulos.

O Princípio da relatividade de Einstein não corresponde a exigir invariância do funcional tempo. De fato, uma das previsões mais curiosas da Relatividade Especial vem do fato dos subespaços de simultaneidades não serem invariantes, vejam exemplos aqui. As simetrias relevantes da relatividade são as transformações que preservam a forma Lorentziana. O grupo de simetria neste caso também têm 10 parâmetros e envolvem as translações e rotações espaciais, mas as transformações de Galileo são substituídas pelas de Lorentz. Vejam mais sobre o assunto aqui.

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